quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

(Crônica) Vêm pingos de todos os lados,

por José Mauricio.

     Um garoto no telhado. E a chuva cai. E eu aqui. E tem uma janela no quarto. E o garoto solta pipa. E eu tenho uma flauta doce. E eu queria ver o garoto eletrocutado caindo do telhado, mas choveu e ele não seguir na ousadia nossa de cada dia. Minha crueldade é um berimbau, que a gente que pensa demais acompanha enquanto dança a luta, ou luta a dança do egoísmo. Tenho medo de chuva.
Será que tem sentido se não existir vida depois da vida, que quem pode escrever vive? Será que o sentido e a relevância da nossa vida para o Universo não está em findar nossa vida? Será que o que importa são só as ações? Será que existem consequências? O menino não parou de empinar sua pipa por medo dos trovões, ou por teorias que dizem que as descargas elétricas das nuvens procuram o caminho onde gastam menos energia para chegar à terra; ele só parou, porque tem medo de se molhar.
Parei com a flauta doce para ir almoçar, sou quase como o menino que solta pipa. Será que ele também não estava me observando e não é poético e visionário como eu? Bom, pelo menos ele olhou para o céu em algum instante, mesmo que tenha sido porque algo lhe incomodou. Eu gosto de pessoas assim: que não tem medo de raio, mas tem medo de chuva. Mas não me deem atenção, porque eu também sou admirador de moscas.

                                                                   *      *      *

  No fundo, a gente só quer alguém que sinta a mesma dor que a gente. O que me dói é o tórax; se você sente dor nos dedos, eu não sou seu amigo! "Eu soube que você anda falando que eu fico implorando para voltar ao nosso lar". Bendito Zeca! Bendito!
O céu nublado anda sorrindo. Acho que me identifiquei com todo mundo nessa história: com o menino da pipa, porque ele não acredita na eletricidade das coisas improváveis - que se danem os elétrons ordenados; com a chuva, porque só cai de vez em quando e os pingos vêm de todos os lados; com o raio, porque acha graça do menino que não lhe teme; com a janela, por que só serve quando alguma coisa incomoda quem solta pipa; com a flauta doce, porque não sai da minha boca; com a pipa, porque é controlada por alguém que tem medo de chuva. E nessa história aí toda, eu sou o telhado: em mim cai o raio, elevo o menino, dou alturas à pipa, em mim cai a chuva, protejo o menino do que ele teme e do que não teme e sou objeto de demonstração de seres, que são inspiração para a composição de canções de flauta doce.
A gente só queria fazer uma menina chorar.

Agradecimentos ao dr. House e ao menino da pipa.

domingo, 16 de dezembro de 2012

(Poesia) Latinhas de mágoa - Parte II,

por José Mauricio.

Passei a ouvir músicas
em espanhol para ver se passa...
Essa dor nunca que cessa;
a mim não há nem tratamento!

Dê-me mais morfinas lúdicas
e outro lençol comido por traça.
Quero nessa maca dormir a beça,
pois a mim não há tratamento.

Não há tratamento nem pronome,
nem seu nome eu lembro mais.
Você nem sei se existiu,
só sei que é passado para mim.

Esse sentimento me consome.
Só me faz te querer mais.
Pergunto, mas ninguém te viu,
só vêem que é passado para mim.

Minha cara lota de espinhas
e minha coluna dói sem motivo...
Você é prévia de morte se não
te tenho em mágoa armazenada.

Guardo rancor com glória em latinhas
e minhas medalhas me chamam "nocivo".
É muito óbvio, que por ser frustração,
eu só te tenho em mágoa armazenada.

(Poesia) Latinhas de mágoa - Parte I,

por José Mauricio.

Ipad, aí não pede;
ipod, aí não pode.
Isso enjoa, sabe?
Uma hora acaba.

Só falta meu alarde;
não faço, pois arde.
Dói tudo e não cabe!
Me mata e me acaba.

Não tenho força assim;
não dá para aguentar.
Fica aí nesse canto
e nunca mais apareça.

Se não é a morte o fim:
como isso vai acabar?
Quando cessa o pranto?
Nunca mais me apareça.

Quantas minas você
plantou nesse peito agrário.
Meu salário foi o silêncio,
esse teu silêncio que mata.

Se não você, alguém vai ser.
Te esqueço dentro do armário,
junto das lágrimas e dos lenços
e do teu silêncio que me mata.

(Crônica) O Segredo de João - IV Capítulo

por José Mauricio.
CAPÍTULO 4:
A busca intermitente.

“Hoje havia mais calma, entende? Hoje eu diria qualquer coisa se você telefonasse."
Caio Fernando Abreu

"No meu silêncio, eu encontro-me. No seu, fico perdido."
Millena Karis



Os dois haviam chegado no lugar onde João deixou o carro. "Esse carro está imundo", era comum do Zé dizer. Mas dessa vez não disse nada. Parecia que nada mais afetava esse Zé, mas era de se esperar com tamanha conturbação no peito. Zé era homem vivido, com experiências das mais incomuns, mas nunca teve maturidade o suficiente para escolher bem quem devia amar. Pobre Zé... Pobre!

- E então, Zé, o que decidiu? - perguntou João abrindo a porta pelo lado de dentro para o amigo que olhava o céu.

- Não sei, João! Não sei.

- Eu creio que a melhor escolha seja expressar para essa pedra fria e mórbida o que sentes, mesmo que seja raiva, rancor, dor, amor, enfim. Expresse-se a ela, Zé!

- João, João... Eu já o fiz. Inúmeras vezes!

- Zé, do jeito que eu te conheço, pelo tempo que já vagamos juntos por essas trilhas, que contamos para todo mundo que é uma tal de "vida": eu aposto que você falou com o seu linguajar poético. Essa sua música de contra-baixo que ninguém ouve, mas faz palpitar o coração por debaixo das camisas e sutiãs.

- João, como me conheces... Como me conheces!

- Zé, pelo menos uma vez na vida você terá de ser direto.

- Mas isso faz-me sangrar.

- É melhor ter uma hemorragia de desintegridade do eu lírico do que ficar sem coração...

- Mas João, o que haverá de ser? Ela me dará um não! Ela é uma ladra! Às vezes eu acho que ela nem existe.

- Eu também penso assim. Ela é uma ladra. Mas como não existe se roubou teu coração. Descartes se precipitou em sua frase mais conhecida; o certo seria: sofro, logo existo.

- João, João... Você sempre querendo criticar a teoria dos outros, as frases dos outros, a opção de sofrimento dos outros.

- Zé, mas isso não é optativo. Ou morres, ou contas!

Zé observava o chuvisco que caía no para-brisa falho, pois por agora não tinha densidade suficiente para parar esse vento que atacava o peito de Zé com essa angústia que já existe à séculos, desde as cantigas de amigo e as trovas de trovadores solitários de seus próprios corações que foram dados as suas musas. E as ladras-robôs-pedras também existem da mesma época, do mesmo dia, do mesmo segundo, do mesmo big bang...

- Zé, de suas indiretas poéticas, o que ela disse? Ou, pelo menos, que som ela emitiu?

- Um dia desses ela me ligou, sabe, João...

- E? O que ela disse?

- Conversamos sobre suas dores.

- Ah! Zé! Assim eu não posso com você! Ela lhe rouba, lhe mata com metástase e você ouve as dores dela? Mate-me e mate-a!

- João, eu amo aquela mulher! O que faria em meu lugar?

Nessa João se calou.

- O que faria, João? O que faria?

- Morte.

- À quem?

- À mim. - disse João.

- Então realmente me entendes. - disse Zé com dois tapinhas no ombro do amigo piloto.

- Mas quando você pronunciou suas frases belas, estóicas, cheias de adornos que escondem a verdadeira essência do que é esse teu natal, de onde nasce um sol poente que se opõe a todas as ideias de amar e ser amado, o que foi que ela te disse?

- Que precisava mudar!

- MATE-A, POR FAVOR!

- Mate-me, por favor. - disse Zé com tom de "você ainda não entendeu".

- Zé, sabe que ela lhe quer... Por que ainda fica se esgueirando e hesitando de mergulhar de uma vez por todas nessa briga de cães?

- Porque no final quem vai sair machucada é ela!

- Mas ela já lhe tomou o coração, já lhe feriu, já lhe apunhalou enquanto divagava sobre os filhos que iriam ter... O que mais você deseja, Zé? O que mais?

- João, João... Quero tempo! Só tempo...

O sinal vermelho causava dores no estômago de João que não se aguentava mais de esperar chegar em casa e preparar uma suculenta macarronada.

- Ela ainda lhe procura?

Zé colocou a mão no bolso, olhou seu celular, olhou pela janela por alguns segundos de reflexão. Era como se estivesse procurando a palavra certa para dizer.

- Intermitentemente! - disse Zé.

(Crônica) O Segredo de João - III Capítulo

por José Mauricio.


CAPÍTULO 3:
Transfigurada numa Excalibur pseudonimal.


''Você é a personificação do amor. Sinta-se feliz.''
Robert Adams

"O que é real, que você deseja?"
GRAFFITI



João parou sua andança, enquanto Zé seguiu como normal.

- Vamos, João. - gritou Zé.

- No momento sou música aleatória.

- Pare já de graça. O sofrimento é meu, João... Meu!

- Mas Zé... É sempre assim, elas nos pedem o que somos, o que temos, o que queremos, o que ganhamos e não nos dão nada em troca; e o pior é que ainda distribuem a outros o que tomaram de nós. É sempre assim, Zé! Não aguento mais essa injustiça. Agora vês o porquê de meu ateísmo? Esse mundo é muito cheio de justiças indolores, de silêncios injustiçados, de gritos abafados pela descrença da punição do poderoso réu que nunca é penalizado, porque a Lei não é igual para todos e só penaliza quem a vida já fez questão de penalizar.

- João, o problema aqui é comigo... Comigo! Pare com todo esse manifesto contra as manifestações religiosas do mundo afora e escute-me.

- Tudo bem. Perdoe-me. Eu sou meio assim: música incidental.

Zé riu loucamente depois de tal afirmação.

- Então, João... C2 tranfigurou-se agora em uma Excalibur, que somente um pôde retirar da pedra. Tudo isso para continuar a busca do Santo Graal, onde se poderá beber do sangue daquele que foi crucificado injustamente; daquele que tomaram-lhe o coração em prol de uma causa que ele não deveria nunca de ter lutado, pois ao fim de tudo: só causará o próprio sofrimento.

- Então vais mudar teu nome para Jesus, Zé?

- Não, só estou dando a ênfase cronicista na história.

- Entendo, música enfática com notas crescentes. Beethoven!

- Quase isso, João... Quase isso!

- E a Excalibur foi retirada por quem?

- Quem mais senão o Homem-da-Excalibur.

- Você é muito impessoal. Eu quero nomes, preciso de nomes. Se não vou acabar esquecendo quem é o Jesus e quem é o espadachim nesse meio de inominados.

Zé só fazia rir cada vez mais. E João lhe acompanhava, pois, como repetia João em risos incontidos: "essa foi realmente engraçada".

- Dai, João, C2, o robô-espada, foi tomada de mim.

- Mas vem cá, acho melhor melhorarmos essa história e você me explicar tim-tim-por-tim-tim... O que foi dado a outro foi teu coração, certo?

- Sim. Já que ela não tinha por si mesma.

- Exato! Então acho melhor darmos ao teu coração o nome de Excalibur, pois foi tirado de um lugar de onde não poderia ter saído, no caso: o peito de tua amada pedra-robô.

- Concordo, João... Concordo!

- Continua então...

- O Homem-da-Excalibur chegou-se a pedra, enquanto eu não a observava, e tirou a Excalibur de lá, pois ele era o escolhido para tal. Desde que nasceu, já lhe tinha sido dada a missão e o poder para retirar Excalibures das pedras desprotegidas.

- Guarde o rancor para si, não quero me contaminar.

- Desculpe-me, João... Desculpe-me! Mas ele tomou e enfim...
- E agora, como vai a pedra?

- Como uma pedra! Não dá sinal de vida, mas está lá fria, petrificada, pedrada, pendrada, cheia de beleza, brilhante, sedimentada e o pior...

Zé parou de falar por uns três minutos e João não lhe forçou, pois viu as lágrimas que brotavam dos olhos do guerreiro ferido chamado de Zé.

- Ela está confusa!

- Como confusa?

- É, João... Confusa! Ela quer a Excalibur de volta para si, pois sabe que me pertence, tanto ela como a Excalibur, ela tinha um juramento comigo, de se guardar até que eu obtivesse o poder para levá-la comigo daquele monte de montanhas; tá certo que ela nunca assinou contrato ou papel nenhum, mas era uma Constituição Dispersa, Não-escrita. Entende?

- Sim, bem como a Britânica. Aliás, odeio ingleses, são uns despreparados... E ainda levaram sua desprevenção para suas colônias que matam inocentes por medo que lhe acabem o petróleo. Esse mundo, viu...

- É, João! O caso é sério e triste e chato, continuemos... Ela me quer, mas não me diz. Ela tem medo de perder a proteção daquele que agora retém a Excalibur, e também agora o Santo Graal. Ela tem medo de lhe pedir meu coração de volta. Ela tem medo de me dizer tudo isso. E eu tenho medo de perguntar se isso tudo de ela ter medo não é só coisa da minha cabeça.

- Já pensou em conversar com a pedra?

- Não sei, João.

- Sei que é coisa de louco e que parece parafilia, mas tente. Pode valer a pena, quem sabe?!

(Crônica) O Segredo de João - II Capítulo,

por José Mauricio. 

CAPÍTULO 2:
O causo.

“Me explica, que às vezes tenho medo. Deixo de ter, como agora, quando o vento cessa e o sol volta a bater nos verdes. Mesmo sem compreender, quero continuar aqui onde está constantemente amanhecendo.”
Caio Fernando Abreu



- O que vislumbro não é dor e nem ferida, é presságio do perigo, minha morte invertida. - disse João ao Zé.

- Eu sempre roubo e suspiro por sua primazia em me dizer o que sinto! - disse Zé a João.

- Só não consegue me tomar esse meu ser de música atonal. Mas enfim, termine de me contar esse teu eu vivido entre talhos.

- Os pés de amora sempre me deixam assim meio nauseabundo, mas enfim... A história segue assim, João: eu conheci uma menina, chamada C2, nome de robô e corpo de gente, e que gente, João... Que gente! C2 chegou, disse-me que aceitava a minha ideia de amor, as minhas teorias de paixão e as minhas ideias de querê-la - o que não tem nada a ver com todo o resto. C2 me deu a mão e me disse: "vamos fugir". Eu, doido que só eu, aceitei a ideia sem pestanejar.

- Realmente, você aceitou a ideia de fugir com um robô-gente que você mal conhecia? Só sendo doido como você! Mas prossiga.

- Não, João, entendeste errado. Ela me deu a mão e disse "vamos fugir", mas não aceitei fugir com ela, aceitei a ideia de lhe dar a mão, o que não teve sucesso algum, pois C2 morava na aldeia alfa-beta-ômega, lá perto d'onde Judas perdeu as alparcas.

- Malditas longitudes.

- Malditas, João... Malditas!

- Mas e ai? O que te deixa tão assim, nauseabundo, fora as amoras?

- Dei minha mão a C2, a moradora do nordeste dessa tralha de Rio de Janeiro não alcançou, então fiz o seguinte: enviei-lhe o coração pelo correio. E não ficou nem rastro do que me palpitava no peito. Nem rastro, João... Nem rastro! Compreendes?

- E essa falta de sangue arterial é o que lhe tem matado?

- Talvez, João... Talvez! O problema é que agora não tenho nem o meu coração e nem o dela.

- Ué? Mas a indivídua não praticou altruísmo e meritocracia para contigo?

- Como assim, João?

- Ela não lhe enviou também o coração que lhe batia no médio pulmonar?

- Não, João... Não! Todo dia eu me pegava voltando para o sofá, após ter olhado a caixa de correio, sem o coração de C2 em minhas mãos.

- Mas Zé, agora me vem em mente que tem um problema nisso tudo.

- Ora, João, conte-me!

- Ela é um robô, como lhe haveria coração no peito? Essas amoras nos deixam idiotas.

- É, João... É! Pensei o mesmo dois anos depois de tanta sofreguidão e de me tornar dependente do sangue de outros.

- Se te conformastes com tal conclusão, por que sofres agora?

- É que ela tem sim coração, João.

- Ora, ora... Não se fazem robôs como antes. Então ela lhe mostrou o que lhe bombeia o sangue? Mas não quis lhe dar, pois disse: "sou um robô com coração, é tamanha raridade tal acontecimento, deixa meu coração comigo".

- Não é bem assim.

- Eu sei, estava sendo brincalhão. São as amoras.

- O coração é o meu.

- Ah! Então queria que ela lhe devolvesse teu coração e ficassem nessa troca gasosa de se presentear com o que se ganha?

- Não, João.

- Então o quê?

- Só não queria que ela desse meu coração para outro.

(Crônica) O Segredo de João - I Capítulo,

por José Mauricio.

CAPÍTULO 1: 
O Segredo de João.

"Eu nunca deixo mesmo claro o que eu tô sentindo. E fica parecendo que eu não sinto. Mas é incrivelmente triste quando desistem do meu mistério."
Verônica Heiss



João tinha um segredo. E João me contou. Mas como é um segredo não posso contar. Mas o segredo é meu. Ainda assim, João me fez jurar que não contaria. João é um medroso. Não vou contar, tá bom, mas João não me impediu de fazer metáforas. E a metáfora vai ser sobre um tal de Zé e uma tal de dona C2, que às vezes também pode ser chamada de Mulher-do-Lago, e um tal de Homem-da-Excalibur. Esses são os únicos personagens desse segredo, ops! estória, ou história, ou causo, ou isso ai que aconteceu na minha vida, ops! na vida do Zé. Enfim...

Zé acordou cedo, tinha café pronto, tinha tudo pronto para acordar bem, mas Zé não acordou bem; Zé acordou tristonho, acabrunhado, macambúzio, essas coisas de Zé né?! Zé deu uma topada e chingou todos os santos, mas logo em seguida pediu perdão ao Longuinho, pois precisava de seus serviços para achar uma camisa passada naquele bolo de roupa embolada. Haja Zé para tanta roupa! Zé tomou seu banho matinal seguido de MPB Fm - paixão de Zé! Paixão de todos os Zés! Esses Zés apaixonados com tanta exclamação! Zé declamava seus poemas para suas musas que ainda não conhecia, enquanto colocava a camisa menos amarrotada daquele bolo de coisa-roupa.

- Pronto, ou não, ai vou eu, mundão! - Zé costumava repetir antes de sair de casa.

Era dia de Zé, de Maria, de João inclusive. Aliás, João esperava Zé na esquina todo dia as seis horas pontualmente para lhe dar uma carona ao trabalho. João e Zé eram eternos amigos desse mundo repetitivo. É ridículo como as histórias dessa vida são sempre as mesmas. Iam, João e Zé, para o trabalho juntos, desabafando, contando suas noites passadas, as brigas com os travesseiros solitários de cabelos femininos, tão vazios de perfumes estrangeiros... Zé era solteirão! João era divorciado de si mesmo. Enquanto Zé se amava aos montes e amava ao montes - mulherengo que só! -, João plantava feijão em algodão e esperava todo dia ver o crescimento daquele fato inerte de crescer plantas, de crescer mudas, de não dizer o que se sente pela pessoa que se ama. João era calado, mas não mudo! Com Zé ele falava pelos cotovelos. E Zé, com o gárrulo jeitão de ser de todo Zé, também não deixava por menos... Falava até ter de parar para respirar; realizava quase uma apneia em seus contos extraordinários, estupendos e impossíveis.

Nesse dia normal de sol oculto, de céu com cores do arco-íris, de sol com dor de barriga, Zé não falou nada. Uma palavra sequer. João estranhou. Zé só respondeu o bom dia de João e olhe lá! João, preocupado com o amigo tagarela, perguntou:

- Ora, Zé, o que há de ser que tu passas em teu interior conturbado? São elas? As musas desse verão amorado?

- João, João... Mal sabes tu o que me ocorre em dentro de o que digo ser sentimento. É confusão, é delírio, é escola de pesares, é aprender a ser entrópico. E eu tão quietinho não sei mais o que é dor, ou o que é ilusão. Tu o sabes.

- Mas Zé, o que há? - dois tapinhas nas costas enquanto a outra mão seguia no volante (João era o rei desse mundo chamado prudência) - Conte-me mais um desses causos, que só agora é verissimílimo.

- João, o que irei contar-te, senão que há amores, rancores e pensares em amar sem rancor?

- Zé, Zé... Agora tudo me vem em mente. Tudo que agora em partes está obscuro já há de ser revelado com a chegada do amor.

- João, não é a Bíblia mal traduzida que irá me livrar de sentir o que sinto agora.

- Pode não ser a Bíblia ridiculamente traduzida, melhor dizendo, mas a verdade. Essa o irá libertar!

- E o que é a verdade neste fato estóico sacramentado em meu peito que nada pode prever?

- A verdade é que tudo deve ser revelado!

Zé, pensativo, respondeu: - A verdade é que tudo é uma revelação!
*         *         *

Mais um dia de trabalho, menos um dia de falar na vida de Zé. Na vida de João também, que passou o dia inteiro pensando no problema do amigo com amores. Os dois iam embora para casa quando no caminho disse Zé: - João, vamos parar e roubar umas amoras da dona Setembrina? Dai eu lhe conto toda a história e o que me arde o peito.

João: - Simbora, ladrãozinho.

Dona Setembrina tentou ainda lhes acertar uma vassourada, mas os dois eram ariscos demais, como quilombolas, ou capoeiras. E Zé deu início ao seu relato, após João terminar suas risadas intermitentes e respirações se normalizarem após a fuga. Essas crianças!

(Crônica) Ouvidos aguçados aos debates sobre segregação.

por José Mauricio.

House: - Não, esperança é o que faz deles infelizes. O que eles deveriam fazer é comprar um Cocker Spaniel. O cachorro olharia o garoto nos olhos, balançaria o rabo quando estivesse feliz. Lamberia seu rosto, mostraria amor para ele.

- É errado eles quererem ter um filho normal? É normal querer ser normal.

House: - Falou como uma verdadeira "Rainha do Círculo". As pessoas magras e brancas com privilégio social desenham esse círculo. E todos dentro deste círculo são normais. Qualquer um fora dele deveria ser surrado, quebrado e refeito… para ser levado para dentro do círculo. Caso isso dê errado, ele deverá ser internado… ou pior, sentir pena dele.

- Então, é errado se sentir mal por este garoto?

House: - Por que sentiria pena de alguém que pode escapar das formalidades… que são, em sua maioria, sem sentido, sem sinceridade e, portanto, degradantes? O garoto não precisa fingir estar interessado na sua dor nas costas…ou suas excreções ou o local onde está coçando na vovó. Você consegue imaginar como seria liberal viver livre… de todas as comodidades entorpecentes da sociedade? Eu não tenho pena deste garoto, eu o invejo.

(Crônica) Ditos de mimi e mama sobre mômô.

por José Mauricio e Yasmim.

    Mimi: Por amores com mais pão com manteiga e geleia, com mais tempero (alho). Por amores com mais perfume, mas menos banho. Por amores com menos cabelo na cara e mais frio. Por um amor mais casal, mesmo amigo. Por amores em que a verdade possa ser vivida. Por amores sem empecilhos e muito Guaravita, pouca Coca-cola, por favor. Por amores ao vivo. Por amores apaixonados, que tirem o ar, e que beirem ao ódio de tanto amor. Por amores ciumentos, mas compreensivos. Por amores equilibrados, que não reclamem da bagunça ou da organização. Por amores pacientes mas que tirem a paciência. Por amores com barbas e decotes. Por amores gordos e por amores com gordices. Por amores que não se privem e que só se importem com o amor. Por amores com aperto no peito e mordidas de bunda.

    Mama: Por amores que amem amar os amores e as amoreiras que amoram nosso coração, que ocultam nossos anseios, dores e calores indígenas. Por mais amores nesse mundo desamado, desalmado. Por amores desarmados. Por amores que nos afetem, que nos completem e nos façam usados e ousados o suficiente para recitar poemas nas noites que caem sobre os nossos causos, nossas calças, os sutiãs e a toalha molhada que a bela musa deixou no banheiro para ele se secar. Por amores que creiam que esses amores existem. Por amores que nos machuquem e assoprem e passem mertiolate. Por amores com seios do seio da terra, com seixos e pedras em catapultas que nos acertem o quão longe estivermos e nos façam lembrar que esses amores existem; e se não existem, podem existir. Por amores como os nossos. Por nossos amores. Pelos amores dos índios. Por amores com cílios, sombras e sois. Por amores a sós, por amores acompanhados do bem-estar e da alma recantada, cantada de novo e de novo, quantas vezes forem necessárias para se entender que amores assim são reais, irreais, surreais, utopias, dicotomias e são os únicos amores que realmente são amores. Amores de amendoeira. Amores de ontem. Por amores que sejam tudo. Por amores com ar de masturbação que se faz pensando no amor que se ama e não se tem no momento. Por amores que nos masturbem a vida inteira com suas primícias e suas preliminares de acreditar a cada dia mais nesses amores. Por amores como aqueles em que costuram nossas blusas depois de rasgá-la com fúria e desejo à noite passada.

(Crônica) 24 de agosto,

por José Mauricio,

    Acordei sem vontade de acordar. Forçado pelo despertador que chamo de mãe. Estava meio feio o tempo; acho que se houvesse um sol de cristal no céu eu diria o mesmo. Infelizmente tive de me levantar da cama, que de qualquer forma não me agradava também, mas era melhor que o frio do chão que me corroía a alma. Pisei. Corroeu. Acordei.
    Era dia de curso. Sem curso certo fui fazendo as coisas aleatórias que todo moribundo faz. Desci, tomei meu café com leite, subi, troquei de roupa, peguei a mochila, meti as tralhas do curso, peguei dinheiro e sai de casa.
    Era dia de pagar o curso. Paguei e fui embora, pois, devido ao meu sono profundo e a enorme motivação em vir para a aula pontualmente, a aula já havia terminado. A vontade de ir embora para casa e contar para meu despertador a inverdade de que não houve aula me tentava a cada passo em direção ao outro curso. Este, mesmo sendo em frente ao outro anterior, parecia que dava passos para trás quando eu me vinha chegando. Sim, eu tinha aula em um curso, depois em outro. É muita tortura para um sábado nublado. E a parte de andar para trás era uma metáfora e eu odeio metáforas, além disso: sou hipócrita!
    Em minha hipocrisia, assisti aula de inglês. Pronunciei o enrolês mais bem pronunciado em toda a américa. A vontade de qualquer coisa não me sobrevinha. O café do intervalo parecia água de bica com coca-cola e nada era bom naquele lugar, nas pessoas e no espelho do banheiro.
    O curso acabou, sem curso segui para o ponto de ônibus. Subi num desses com números cotidianos que todo trabalhador pega. Peguei eu também. Passagem paga, eu em pé, trocando mensagens o dia inteiro com a mesma pessoa. Quem será?
    Chegando em casa, dormi incontidamente. Acordei, almoçei, refleti. Mais o quê? Não me lembro. Ah! Sim. Ensaio da Beleza Rustica. Rustica tanto que não me transportava a nenhuma alegoria de beleza; essa banda já tinha acabado há muito tempo, mais eu ainda me movia normalmente nesses dias de sábado para a banda de Campo Grande.
    Roupa rústica, dinheiro no bolso, mochila bela - ou tudo ao contrário - e eu indo para a Avenida Brasil. "O tédio mórbido nos assola".
Celular, mais mensagens, mais pensamentos sobre a vida e o que ela me oferecia... E mais nada. E mais muita coisa que eu nunca quis que existisse. E mais tanta coisa que existe e eu amo. E mais ela que existe.
    Um convite. São João em pleno dia santo? Agradeço a ti, Constantino, pois se não fosse tua heresia malcriada contra o Shabatt, não haveria este domingo no meu calendário. Domingo de calor, de céu-nublado, de chuva, de ombro doído, de corpo maltratado depois de um pouco de futebol americano.
    Domingo eu a vi. Domingo ela me viu e viu também o Anderson, que me livrou de ser fatiado pela Excalibur. Amigos servem para isso. E é tão entediante essa infantilidade de fingirmos que somos só amigos, quando pulsa amor, paixão, desejo e 3 anos de fome.
    O número 3 se repete mais uma vez. Dessa vez não é falso como a Trindade, é real. Tão real. 3 vezes mais real que toda a realidade. 3 anos de dor, espera, ansiedade e cursos diferentes e distintos. 3 meses de favor, desespero, tenuidade e o curso que ela escolheu seguir. Esse rio é tão cheio de vertentes?
    Nunca aceitei ter dez dedos em uma mão. Tire a mão e de onde vieram os dedos? Eu sou tua mão. Dá-me a tua também e segue a vida de mãos dadas, não com o que tu escolheste e que o cerebelo e o indicador apontam ser o melhor, mas com o que nós escolhemos sem apontar por estarmos longe de mais um do outro.
    Nós crescemos: você em uma fazenda e eu no estábulo. Correu a vida inteira, cavalgou, alada. Eu? Trancado, só isso: trancado! E agora que eu consegui fugir e aprendi a correr, aonde vou? O tiro de partida desse turfe já foi dado, mas não quero o troféu e nem me importa ganhar alguma coisa se essa coisa não for você, minha coisa. Minha alada.
    Deixa-me cavalgar nos longos pastos dessa lida. Só entenda que se eu for não haverá mais volta. Vou seguir, ganhar muitas corridas e muitos troféus, e talvez nunca mais nos encontremos. Somos quadrúpedes. "Vento em cadeia". Cavalos marinhos de fogo que a água ri ao apagar.
    Estou aqui, sempre estarei. Eu minto a todo segundo para mim mesmo dizendo que mentir não é errado e que não me importo se você também mente para si mesmo. Estou aqui.
    Hoje não é 24 de agosto e por mim nunca teria sido.

(Crônica) Paixão,

por José Mauricio.

    Boas ideias fazem sorrir, bem como os momentos de ociosidade. Ela está há um passo do paraíso e diz que não enxerga. Ela morreria por um banho quente. Ela pede pão com a delicadeza de uma freira, mas nega às confissões dos seus pecados.
    Ela vive e respira, sempre diferente de todo mundo. Nunca querendo chamar atenção, mesmo com toda a sensualidade de um rótulo de perfume francês.
    Ela mata formigas e odeia matemática com todas as forças. Acho que ela não come cereal e gosta de café; eu acho que sempre sei de tudo. Bom, que ela odeia matemática eu tenho certeza, já quanto a me apaixonar em dois dias eu não sei.
    Sei muita coisa sobre ela e pouca sobre os reflexos.
    É muito bom ter um sonho, ajuda a superar os momentos difíceis.

(Crônica) Para você,

por José Mauricio.

    Se você estiver lendo, só leia. Não precisa criar suas objeções de sempre, não tenha aqui também o seu antigo medo de ser e gostar do que gosta. Isso aqui pode não te dizer nada, assim como eu mesmo não disse, mas pelo menos é um desabafo matinal, desses que a gente faz com a mãe durante o café da manhã. Aliás, minha mãe que me aconselhou a escrever-lhe uma carta, mas como eu tenho tanto esse medo de bagunçar sua vida e sua roupa passada eu preferi só escrever uma carta e não dizer que é para você. Se você for você, vai saber que é sua. Como meu coração sempre foi.
    Fiz cirandas na varanda, simpatias e antipatias te esperando na janela, compus mais de centenas de canções e redigi mais de milhares de frases. Tive, também, mais de milhões de insights ao ouvir certas músicas e me lembrar do teu rosto, da tua boca, do teu canto e do teu encantar. Você dorme, eu sou quem vela. Você se confunde e a culpa é minha. Você chora, eu sou quem chora também. Sua voz está muito longe do que um dia já foi, se é que já foi alguma coisa... Eu não sei mais a quem pedir conselhos; todos os meus psicanalistas não-formados em Harvard dizem sempre o mesmo: você deve falar com ela, contar o que sente; mal sabem eles que isso é desnecessário e você também sabe que eu não gosto de perder tempo.
    Eu te peço para largar e você simplesmente "largartixa"? Isso não está errado? E não estou falando sobre o neologismo tradicional que banalizo em meus escritos, cartas, pedidos e solicitações espirituais; estou falando sobre o que você tem em mão. Não é de cerâmica, é porcelana. Porcelana babilônica, para ser mais preciso, uma antiguidade das antiguidades das coisas antigas. Vale muito, vale a vida, vale o amor. Vale meu coração e o teu também. Vale só o que a própria peça vale, que é bem mais do que nós dois juntos.
    Se estiver lendo isso e você for você, entenda que não vou me suicidar, apesar do dejavú que tive que o faria após escrever esta; e tenha certeza que se a cerâmica e o valor não lhe for mais agrado aos olhos, eu e meus trapos de imundícia estaremos aqui amarrados na sombra, porque até o sol lá fora já não é tão bonito sem a tua voz que eu lhe falava.

Enfim!
A vida é nossa.
A minha é tua.

(Crônica) Pegadas no hall,

por José Mauricio.

    Um assalto que virou notícia. Um ladrão que virou astro de Hollywood - também não é para tanto. Uma prisão inusitada. Nunca antes foi visto tanto sensacionalismo em uma capa de jornal. Tanta coisa aconteceu nesse simples fato tão tradicional e tão, ao mesmo tempo, excêntrico. Chega a ser hipocrisia esse relato, mas deve ser feito, mediante a inexatidão que se criou sobre o ato, devido a inexpectativa social do mesmo.
    Era noite, bem de noite. Aquela noite que ninguém queria que fosse noite. Aquela noite com cara de meio dia com sol quente. Aquela noite da noite que anoitece nossas pálpebras. Aquela noite de sempre de cidade pequena. Era noite e é isso que importa. Nessa noite - bem de noite - aconteceu algo estranhíssimo, como já vos disse: um assalto. O fato de ser assalto não é alto o bastante para se dizer que foi estranho. Carlos Silvério da Silva, pacato cidadão da pequena Norte Santo, acusado de ter praticado um ato ilícito de tentar tomar algo que não lhe pertence. Um fato tão comum nesse mundo corrompido tem causado tantas ruminâncias e exegeses no meio do Direito. Advogados têm deixado de dar beijos de boa noite em seus filhos, pois não podem perder tempo para entender afundo esta situação, já que a Lei não tem sido clara o bastante sobre isso desde que mundo se chama mundo.
    Carlos disse em seu depoimento: - Roubei e roubaria mais uma vez. Eles querem nos limitar de ir mais além, aí ficamos nesse nosso pleonasmo paradoxal de repetir o que ainda nem ouvimos - Carlos parou para respirar - e, do jeito que eles nos manipulam como vasos de barro, nunca ouviremos.
    Depois de ser julgado, injustamente, pelo Estado - patrono de toda a justiça mascarada -, Carlos foi condenado à pena de morte. Em sua última frase antes do fuzilamento, Carlos gritou: - Tudo é dor e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor. Quando o sol bater na janela do seu quarto, lembra e vê que o caminho é o sol.
    Carlos era um bom homem. Pai de família. Historiador. Gostava de pão com mortadela, café. Amava seus filhos como nunca antes se amou. Carlos era tudo que a gente é. Carlos era enfermeiro quando Moisés, seu filho, ralava o joelho na rua. Carlos era professor de matemática quando Moisés demorava a entrar no chuveiro para lavar o ralado. Carlos era esposo de sua esposa Clarice. Clarice e Carlos eram eternos amantes, ainda que fossem casados. Carlos era pontiagudo e Clarice era um alvo amanteigado e boleado. Ela: suave. Ele: tristonho, revolucionário. Clarice era leitora. Carlos era leitor. Carlos escrevia belíssimos cantos de trova, cantigas de amigo, de ciranda, de cor fúnebre. Carlos era escritor, mas não aceitava de jeito maneira esse título; ele dizia que os únicos títulos que podiam ser aceitos eram os de: visconde, duque, conde e barão. O mestre da Silva odiava títulos nobilíarquicos, pois, dizia ele, que, apesar da única riqueza que existe ser a nostalgia, e ele tê-la como eterno objeto de adoração e rendimento de honra e louvor, ele era o mais pobre desse mundo burguês, de meias altas e belos vestidos que estão cada dia menores, mostrando a verdadeira face desses podres de rico. Carlos era fã de belas pernas.
    Carlos foi preso por roubar um livro.


"Ao invés de roubar jóia, rouba livro, tá ligado!"
MC Marechal.

domingo, 9 de dezembro de 2012

(Crônica) A gente vence o próprio pulmão,

por José Mauricio.

   Que cadência, que romântico, bucolismo: tem um banquinho aqui na frente de casa. Vivemos nesse mundo onde os mundos são sempre os mesmos, só mudam as faxadas. As caras descaradas, as vergonhas incertas que nos faltam em meia dúzia de decisões. Pudor? Não se ouve falar mais nesse mundo de rancor. Mas para que tudo isso se aqui na frente tem um banquinho?
    Nesse banquinho já debatemos sobre o leite dos anéis de Saturno, sobre a fórmula química de refrigerantes, sobre estórias e lendas de meninas peraltas que nos tiram o sono e a atenção, sobre tudo o que se viu nessa rua e em todas as outras. Alvo de pensamentos de gente só, descanso para quem não tem mais saída, amigo de quem não tem onde cair morto, ou sentar antes de cair. Esse banquinho é a entrada para um pensamento campestre, é o início da previsão de cada desastre com impacto mundial: tsunami no Japão, terremoto no Haiti, dor de amar de um tal José, fim do amor de um tal Anderson; o banquinho também serviu de divã para terapias realizadas à luz da lua, onde só foram cobrados um abraço no final da consulta e um suspiro dizendo "vou tentar".
    Esse banquinho é de todo mundo. É claro que a preferência é dos moradores da frente que assistiram a construção do amigo banco e puderam se deliciar com a imaginação de todas as situações que esse banquinho proporcionaria. Com seus trinta centímetros de altura, 30 centímetros de profundidade e um metro e 60 centímetros de largura, o banquinho recebe apaixonados e apaixonadas, recebe flertantes aos montes, recebe filósofos com alto grau de conhecimento cosmológico e metafísico, e suporta tudo isso com ar de frieza concreta. Foram gastos alguns tijolos, cimento, água, areia, pedras e alguns azulejos em sua construção. Sua beleza rústica é chamariz daqueles que gostam de passar tempo refletindo sobre quem são. O banquinho é um livro de sedimentos.
    Cadê o amigo que não vem? Espere no banquinho. Cadê dona Costa que não chega? Espere no banquinho. Nesse banquinho há espaço para qualquer tipo de coração. Realizam-se eletrocardiogramas, entre outros desses exames que mostram nosso estado de espírito. Nesse momento há ânsia, e não é de vômito, é de ruminância! Esse banquinho, onde de manhã as senhoras passam tempo dando "bom dias", "olhando a rua" - como elas mesmo dizem - e sendo veneradas pelo olhar desse que vos escreve. Não estou aqui tentando vender o banquinho, ele não tem preço, só estou tentando mostrar o que a gente perde todo dia em frente de casa.
    Ele não deve valer muita coisa, santa contradição capitalista! Por isso não o vendo. Só estou vendo que esse banquinho é quase um pai que nos recebe os sentimentos mais egoístas, que suporta o fardo que nós devíamos carregar, que nos recebe sempre solícito - às vezes sujo e molhado pela chuva.
    Não há altruísmo suficiente que se compare a esse banquinho. Não há coisas tão bonitas no mundo que devamos observar, além do banquinho em frente de casa. Da janela vejo o banco me chamar e quem me espera nesse banco. Costa não está lá e em minhas costas só há um quarto bagunçado das tralhas que eu achei que poderia amar tranquilamente. Mas bagunçou o que eu sentia e o que eu era nesse planeta chamado mundo. Meu mundo tem nome de gente.
    Receba-me mais essa vez, banquinho!

(Poesia) Cárcere,

por José Mauricio.

Dentro do meu coração ficou
esse silêncio falando de amor.
E até em meu sono só consigo
pensar em você. Já acordou?

Queria saber como foi seu dia.
Será que de manhã tomou café?
Será que tomou banho antes
de ir para o trabalho à pé?

Você não quer me contar mais
nada dos seus dias que quero viver.
Você agora guarda tudo para aquele
com quem você escolheu viver.

Por favor, me dê a liberdade
ao coração que já não aguenta mais.
É só dizer que não me ama,
me rejeitar e me deixar em paz.

Mas você me procura vira-e-mexe
me dizendo entre linhas que ainda
sente falta, que sofre um pouco
e me conta o porquê de tudo em sua vida.

Me escondes em teu peito e deixa
o sabor de sempre querer mais um pouco.
Molha minha língua com a tua água da vida
e me diz que gosta, porque eu sou louco.

Você me faz tanta coisa para esse
coração que não aguenta tanto assim.
Podia simplesmente dizer: some!
E talvez finalmente isso tivesse fim.

Mas faz questão de me deixar de canto,
fingindo que um dia ainda vai me levar
para viajar com você e ele. Dizendo
tudo isso sem nada me dizer ou falar.

E eu não tenho direito nenhum
de me rebelar dentro dessa ditadura;
só posso esperar sua solidariedade
e sua carta de auforria quebrar a ligadura.

Quebre enfim estas algemas que me pôs
nos ventrículos e em cada parte do coração.
Meus átrios estão lotados de tuas frases
e só há sangue venoso, sem o ar da razão.

Você me fez escravo, prisioneiro,
condenado a estar aqui para sempre,
e se eu tento me libertar,
você faz questão de fortalecer a corrente.

Me leva em qualquer canto com
o cheiro desse teu perfume,
mas eu me arrasto, me lanço,
engulo areia, vapor e estrume.

Do que eu me alimento,
senão de sofrer a cada dia que tenho esperado?
Senão dessa tentativa, falha certamente,
de te querer aqui do meu lado...

Sendo prisioneira, como eu sou.
Quanto mais você some, ainda sobra algo.
Não sei se é você quem me prende,
mas quanto mais você respira, mais me afogo.